CampiCicatrizesA marca da operação cruzava o centro do tórax na vertical, longa, estreita em alguns pontos, com queloide em outros. Já fazia alguns anos que Marcos havia tido o problema, quase se foi, e o dia daquela marca virou a sua segunda data de aniversário.
Se a gente olhar bem, vai notar diversas marcas em nossa corpo, cada uma relacionada a um momento, uma dor, um descuido, desafio. Umas ficaram por pouco tempo, outras permaneceram feito tatuagem, na pele, na alma.
Se a gente pensar bem, vai entender que essas cicatrizes serviram mais do que a falta delas, mais do que aquilo que foi bom, passou e não marcou. Elas nos ensinam, nos alertam, e se caímos novamente na mesma armadilha, no mesmo descuido, não será sem saber, apenas acontece.
A gente costuma orar pedindo que nos afaste de todo mal, queremos distância das provações, até porque, tem hora que cansa, tem hora que esse papinho de aceitar as trombadas como aprendizado enche. Mas basta olhar para uma cicatriz para comprovar que depois de um tempo, a ferida sara, as mais profundas deixam marcas, e por mais dor que aquele momento trouxe, foi com ele que a gente aprendeu, cresceu. E superou, viveu e sobreviveu, afinal, corpo morto não cria cicatriz.
Marcos quase se foi, um pouco pela vida que levava, agitada, voltada apenas para o trabalho, os compromissos, a falta de tempo, a falta de ar. Outro tanto pelos efeitos colaterais dessa opção de vida, pelos vícios agregados, pelo foco das prioridades. Quase perdeu a vida, a família, a oportunidade de fazer dessa um experiência feliz. E quando renasceu, quando ganhou de presente uma nova data de aniversário, tudo mudou, seu foco, suas verdades, suas crenças. Algo ruim, muito ruim, o fez enxergar o bom, e isso não aconteceria sem aquela cicatriz que agora ele traz no peito.
A questão é: será que precisamos nos machucar para entender? Tem hora que não temos escolha, ganhamos a cicatriz sem querer, mas tem hora que temos. E temos mais.
Temos fome de querer muito mais do que nos sacia, e ao conquistarmos, nos acostumamos e nos enjoamos, para partir em busca de mais, e só darmos valor ao que tínhamos depois que perdemos. Nessas horas, a gente merece uma bela e grande cicatriz, daquelas que registram com ênfase, legendada com queloide, para virar aprendizado, doído, mas necessário. Nessas horas, a gente percebe que cabe a nós mesmos encontrar a chave que abre a cela da prisão que criamos, fruto dessas buscas surdas, mecânicas. Ela não vai cair do Céu, nem vai ser encontrada se continuarmos seguindo a trilha da boiada sem avaliar se aquele é realmente o nosso caminho.
Quando a gente corta a pele, nosso organismo age buscando reconstituir a integridade dos tecidos afetados, mas não temos como regenerar totalmente esses tecidos, a ferida vai fechar, sarar e vai deixar o registro que ela existiu.
Quando machucamos a nossa alma, também não temos como regenerar, nem apagar o que aconteceu, mas certamente podemos superar e a cicatriz que ficar será nossa companheira, para toda vida. Saber conviver e usá-la como aliada pode ser o segredo, um dos ingredientes, nessa nossa eterna busca da felicidade.