2016 Ouro Rafa smA cada quatro anos, o planeta é banhado por uma energia, por uma vibração difícil de explicar e que deixa uma sensação de que ainda não somos um caso perdido.
À primeira vista é um evento comercial, ufanista, repleto de interesses paralelos e superficiais. E de certa forma, não deixa de ser. Da mesma forma que é também uma demonstração única do melhor que podemos oferecer sem os interesses de barganha, tão comuns nas relações humanas.
Os protagonistas trazem para o palco público seus mais profundos desejos de se desafiarem, de escancararem seus talentos e limitações buscando vencerem antes de tudo a si mesmo, superarem suas metas, exaustivamente testadas e exercitadas por anos de dedicação. E num encontro coletivo, colocarem em xeque essa capacidade de superar seus competidores diretos embalados por um espírito que não empregamos em nenhum outro embate humano. A vaidade pessoal continua lá, o ego, o narcisismo, o preconceito, o sentimento de superioridade racial, mas todos esses distúrbios genéticos próprios do ser humano entorpecem em nome de um sentimento superior, oriundo dos deuses, que se convencionou chamar de olímpico.
E o efeito mais surpreendente dessa química é que quem assiste aos atores desse teatro esportivo se contamina de forma involuntária e contundente desse espírito, primeiro claro, torcendo por seus irmãos de origem, mas também por seus irmãos de alma, que não identifica bandeira, escudo, partido.
Nesse embalo que brota de dentro do peito, a gente se vê olhando para a tela fria e em alta definição da TV, chorando sozinho pela conquista de um atleta recém apresentado a nós. Se emociona por um desconhecido nem vencer, mas conquistar o lugar em um pódio suado, chorado, que é só dele. Ir às lágrimas pela felicidade dele, que passa a ser nossa. Que luta por uma conquista pessoal e que assumimos como nossa. De um país que nunca estivemos e que não faz a menor diferença. Nos emocionamos pela oportunidade de nos sentirmos verdadeiramente humanos e a vitória dele, que nem precisa ser vitória, se transforma em nossa.
Caem por terra todos os interesses que nos movem a reagir conforme a barganha tácita do toma lá, dá cá. Desmorona nossa fachada de ser superior que está acima dessa bobagem comercial, afinal, de que vale um personagem visivelmente acima do peso, que se diz atleta, e que pretende superar a quantidade de peso que é capaz de levantar sobre a cabeça? Vale tanto quanto assistir um deus negro informal que compete como quem corre no parque conquistar um feito que nenhum outro atleta já tenha conquistado, em três olimpíadas seguidas, ao ser o mais rápido da pista: nada. Ou tudo.
Enquanto um dos 16 canais transmitia o deus negro encenando um raio após sua nona medalha de ouro, em outro, o garoto Omran Daqneesh, de apenas cinco anos, era levado em uma ambulância, sujo, sangrando, resgatado de um ataque aéreo em Aleppo, na Síria. Seria leviano comparar essas duas imagens em um “qual vale mais”. Duas faces de uma mesma moeda, de um mesmo planeta, que emociona a quem vê. Que sinaliza um ainda presente sentimento de humanidade, por motivos claramente diversos.
Omran nasceu em meio à guerra, é só o que ele conhece. Que um dia vai acabar, como as Olimpíadas, ou como tudo que tem início. Saber encarar esse dia de “fim” é mais uma prova dessa maratona da vida. Omran encerraria já, e bem. Outras despedidas já são mais complicadas.
Encarar o último dia da escola, se despedir de colegas que muitas vezes não iremos ver mais, é um “fim” difícil, independente do ciclo que você esteja, se no básico ou na faculdade. Encerrar ciclos é sempre difícil, por outro lado, muitas vezes libertador. E cada um que consulte seu histórico: o “fim” da relação amorosa, da relação de trabalho, do convívio com alguém querido da família.
Até mesmo o fim deste evento, que antes de começar era visto como o “fim” da picada ser realizado. E que a gente agradece que os pensamentos pessimistas sobre a sua realização não tenham se concretizados.
Hoje termina algo que a gente agradece ter visto, acompanhado. Hoje tem fim algo que terá a sua volta aguardada com carinho.
Alguns fins não merecem voltas. Não é o caso do espírito olímpico.